160 anos

Dia de celebrar o poeta, aquele que foi um dos maiores símbolos da Velha Desterro. Há 160 anos nascia João da Cruz e Sousa. Sem muito o que falar sobre este astro da cultura nacional, segue o poema Velho Vento que tanto mexe com a gente.

VELHO VENTO 

Cruz e Sousa 

Velho vento vagabundo! 
No teu rosnar sonolento 
Leva ao longe este lamento, 
Além do escárnio do mundo. 

Tu que erras dos campanários 
Nas grandes torres tristonhas 
E és o fantasma que sonhas 
Pelos bosques solitários. 

Tu que vens lá de tão longe 
Com o teu bordão das jornadas 
Rezando pelas estradas 
Sombrias rezas de monge. 

Tu que soltas pesadelos 
Nos campos e nas florestas 
E fazes, por noites mestas, 
Arrepiar os cabelos. 

Tu que contas velhas lendas 
Nas harpas da tempestade, 
Viajas na Imensidade, 
Caminhas todas as sendas. 

Tu que sabes mil segredos, 
Mistérios negros, atrozes 
E formas as dúbias vozes 
Dos soturnos arvoredos. 

Que tornas o mar sanhudo, 
Implacável, formidando, 
As brutas trompas soprando 
Sob um céu trevoso e mudo. 

Que penetras velhas portas, 
Atravessando por frinchas... 
E sopras, zargunchas, guinchas 
Nas ermas aldeias mortas. 

Que ao luar, pelos engenhos, 
Nos miseráveis casebres 
Espalhas frios e febres 
Com teus aspectos ferrenhos. 

Que soluças nos zimbórios 
Os teus felinos queixumes, 
Uivando nos altos cumes 
Dos montes verdes e flóreos. 

Que te desprendes no espaço 
Perdido no estranho rumo 
Por entre visões de fumo, 
Das estrelas no regaço. 

Que de Réquiens e surdinas 
E de hieróglifos secretos 
Enches os lagos quietos 
Revestidos de neblinas. 

Que ruges, brames, trovejas 
Ó velho vândalo amargo, 
No sonâmbulo letargo 
De um mocho rondando igrejas. 

Que falas também baixinho 
Lá da origem do mistério, 
Trazendo o augúrio sidéreo 
E certa voz de carinho... 

Que nas ruas mais escusas, 
Por tardes de nuvens feias, 
Como um ébrio cambaleias 
Rosnando pragas confusas. 

Que és o boêmio maldito, 
O renegado boêmio, 
Em tudo o turvo irmão gêmeo 
Do sonhador Infinito. 

Que és como louco das praças 
Nos seus gritos delirantes 
Clamando a pulmões possantes 
Todo o Inferno das desgraças. 

Que lembras dragões convulsos, 
Bufantes, aéreos, soltos, 
Noctambulando revoltos 
Mordendo as caudas e os pulsos. 

Ó velho vento saudoso, 
Velho vento compassivo, 
Ó ser vulcânico e vivo, 
Taciturno e tormentoso! 

Alma de ânsias e de brados, 
Consolador companheiro 
Sinistro deus forasteiro 
D'espaços ilimitados! 

Tu que andas, além, perdido, 
Tateando na esfera imensa 
Como um cego de nascença 
Nos desertos esquecido... 

Que gozas toda a paragem, 
Toda a região mais diversa, 
Levando sempre dispersa 
A tua queixa selvagem. 

Que no trágico abandono, 
No tédio das grandes horas 
Desoladamente choras, 
Sem fadigas e sem sono. 

Que lembras nos teus clamores, 
Nas fúrias negras, dantescas, 
Torturas medievalescas 
Dos ímpios inquisidores. 

Que és sempre a ronda das casas, 
A gemente sentinela 
Que tudo desgrenha e gela 
Com o torvo rumor das asas. 

Que pareces hordas e hordas 
De hirsutos, intonsos bardos 
Vibrando cânticos tardos 
Por liras de cem mil cordas. 

Ó vento languido e vago, 
Ó fantasista das brumas, 
Sopro equóreo das espumas, 
Ó dá-me o teu grande afago! 

Que a tua sombra me envolva 
Que o teu vulto me console 
E o meu Sentimento role 
E nos astros se dissolva... 

Que eu me liberte das ânsias 
De ansiedades me liberte, 
Pairando no espasmo inerte 
Das mais longínquas distâncias. 

Eu quero perder-me a fundo 
No teu segredo nevoento, 
Ó velho e velado vento, 
Velho vento vagabundo!







Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.